quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Carmen Bentes

Um grito no espelho


- A sensação de náusea, sei lá... angústia, parece que vou morrer a qualquer momento, essa ansiedade sem controle, esse medo inexplicável. Não suporto mais.

- Tem tomado a medicação? (vinda dos umbrais, pensou ela, parecia que aquele médico, tinha voz de morte).

- Hum? Medicação. Ah! Não me agrada tomar medicação de louco.

- Louco? (novamente a voz dos umbrais), a medicação que lhe dei é específica para seu caso.

“Específica para o meu caso...quem dera eu soubesse qual é o meu caso. Como fiquei assim”?

Entrou em casa e o estômago dava os conhecidos sinais de vômito iminente, nem parou para cumprimentar o marido e a filha de quatro anos. Foi despejar sua agonia no banheiro e findo o inexorável processo que há meses lhe perseguia, entrou no chuveiro. O banho, interminável e quente, era seu único refúgio, como um ventre materno. Saiu e se expôs nua em frente ao espelho, na sua mazela de não tomar conta de si e nem de mais nada. Soltou um gemido, que mais se assemelhava a um vagido de dor e desespero.

Impiedoso e franco (dessas franquezas dispensáveis) o espelho lhe mostrava um zumbi, saindo de si mesma. Anoréxica, pálida, covas profundas e arroxeadas nos olhos, uma silhueta estranha, porquanto magra e desproporcional à estrutura óssea de largos quadris. Novamente a náusea e o retorno ao banho. No armário estavam os remédios. Olhou as bulas, leu e decidiu-se por um indutor de sono.

Separou uma garrafa de uísque e escondeu-a no banheiro. Agora era só esperar.

Num hercúleo esforço, automatizado por instintos, colocou a menina na cama e a beijou. Já estava adormecida mesmo. O escatológico ritual de vômitos constantes e banhos de exorcismo para livrar-se das angústias e limpar-se da azeda náusea de quem mais nada tem a vomitar, a não ser a própria existência, era demorado. A menina sempre adormecia antes.

Madrugada de soturno silêncio, o silêncio que deveria permanecer para sempre com ela. Levantou-se. Não dormia. Dormir era um luxo, as insônias, pesadelos horríveis e incontáveis cigarros acessos – um em seguida ao outro - já eram seus pares perfeitos. Caminhou para o banheiro.

Trêmula, não pelo que estava por acontecer, mas porque vivia assim, trêmula, abriu o armário e assenhorou-se do remédio escolhido.

“Que barulho delicioso e montóno fazem esses aparelhos de ar-condicionado. Barulho bom, quase como uma cantiga de ninar, quase uma ladainha para que os vão partir”, ela e seus pensamentos tão eloqüentes e distorcidos...

Tudo era de uma simplicidade estarrecedora: ingerir todos os comprimidos com o uísque, sentar-se no chão do box com o chuveiro ligado, onde adormeceria amparada pelo casulo dos ajuzelos e tudo o que temia estaria acabado. E, finalmente, a paz.

“Ah! Um copo” (beber do gargalo, jamais, cisma inexplicável), mas o percurso de volta até a cozinha lhe pareceu absurdo e longo.

“Uso uma das mamadeiras sem o bico” coisa ridícula de se cogitar naquele instante, mas estava tão perto...abriu a porta do quarto da filha e o armário onde estavam as mamadeiras ainda sem uso.

- Oi mamãe!

Mamadeira no chão, largada pelo susto. Ela de pé, como um sinistro monge em seu roupão fitando a filha, também de pé, com o cobertor na mão e o bichinho favorito na outra.

- Quero dormir com você. Vou levar o Buba. Assim você vai dormir um soninho gostoso, o Buba nina a gente, tá?

Esgotada de tantas dores, foi ajoelhando-se em etapas, até ficar sentada grotescamente enquanto chorava.

- Chora não mamãe, o Buba toma conta da gente, chora não que eu também choro.

Agarrou a menina com força.

- Ai mamãe, assim machuca! Me bota no colo.

Filha no regaço, foi até o quarto e deitou-a na sua cama.

- Espera que a mamãe já vem dormir com você.

Retornou ao banheiro e novamente aquele vagido rouco em frente ao espelho. Não conseguiu mais chorar. Tomou a medicação e voltou para o quarto. Deitou-se ao lado da menina.Tinha então que ser daquele jeito. O destino escolhera assim.

- Chamamos para receber o diploma de bacharel em Direito...

Acordou de suas lembranças e voltou a observar a formatura da filha. Linda em sua beca, radiante, feliz. Vinte anos atrás, aquela jovem mulher a tinha trazido de volta. Como alguém que mergulha e resgata um afogado das profundezas abissais.

O segundo marido, seu casamento não resistira a sua psique instável e nebulosa, segurava-lhe a mão e sussurrava ao seu ouvido:

- Parabéns amor, ela já lhe contou em que ramo do direito vai se especializar?

- Ela vai ser feliz. Ela vai ser feliz. Feliz. Só feliz.

- Claro. Ele encerrou o assunto ali e observou-a com cautela porque conhecia sua gangorra emocional.

Sabia que naquele momento, a repetição contumaz do “ela vai ser feliz” não era uma assertiva. Era uma prece para que a vida de sua filha não repetisse o destino daquela mulher que se repetia amedrontada. Ainda, e talvez para sempre, amedrontada.

O medo inexplicável era como um Minotauro à espreita, escondido nos seus labirintos existenciais.


(Este conto é uma adaptação de um dos capítulos do romance "A sacerdotisa das sombras", ainda a ser concluído e publicado. Obrigado Carmen! Acima, detalhe de uma fotografia de Robert Capa.)



10 comentários:

André Ferrer disse...

Dos flashs de uma noite angustiante, entre muitas, a narrativa crua e objetiva de Carmen nos conduz ao desfecho inesperado: a formatura da manininha crescida. Moderno este fluxo de tempo! Sem fáceis indicações, as passagens do tempo nos surpreende. Foi uma boa adaptação de trechos de romance para um conto. Funcionou bem.

Bianca Feijó disse...

Poxa,que trecho forte,imagino que o livro deve ser muito bom, tanto quanto o trecho postado.
Vou querer o livro!
Parabéns Carmen!
Ganhaste uma fã!
Beijos!

Unknown disse...

Sem dúvida muito forte. Eu que já sou fã há muito tempo não vejo a hora de ler, completo, este romance que promete. Beijos e é claro Parabéns e Sucesso.

heloisa ausier disse...

É minha irmã... meio que levei um soco no estomago com esse teu conto. Forte e denso... e não poderia ser de outro jeito partindo de você. Difícil não ficar emocionada e apesar de ter vivido isso de perto, agora me pareceu mais duro. Dura é a vida, não é? Mas ter uma menina linda e lúcida por perto ajuda muito. Sou sua fã... sempre! Beijos!

Marcos Freitas disse...

Lindo conto, uma verdade obra de arte, apenas uma prévia do que está por vir, quero ler o livro "Sacerdotisa das Sombras", promete ser emocionante.

Parabéns querida, a cada dia vejo que es uma mulher rara, sensível, imprescindível para nossas vidas...

O VIADO E A TRANSGRESSÃO POÉTICA disse...

Belíssimo conto, quantas vezes eu mesmo já não me senti assim? Será o escritor aquele que fala pela gente? Ou será que escrevemos para provar para nós mesmos que ainda não morremos...
Somente a grande coragem de Carmen para falar de um tema tão dolorido, com tanta emoção e perfeição...
Obrigado, Carmen!
Ricardo Aguieiras
Aguieiras2002@yahoo.com.br

Unknown disse...

Carmen,
O conto prende o leitor de uma forma tão imutável quanto o estado variável de humor da personagem... e surpreende pelo final criativo!
Por sorte o texto não é longo o suficiente e nos permite sair da parada respiratória em tempo!
Parabéns!

Marta Peres disse...

Carmen,
seu conto prendeu minha atenção como se fossem teias de seda. Nele viajei, busquei lugares nos umbrais e até luzes iluminaram meu pensamento.Tenha a certeza de que um poema irá sair dali.
Parabéns!

Marta Peres

literatura disse...

Amiga,
Acabei de linkar o seu nome no meu blogue, pois acho que você merece.
Um beijo

literatura disse...

Querida amiga!
Li a sua postagem. A forma e o conteúdo são excelentes. Saiba que a síntese de uma obra é sempre difícil. Sinto que no texto postado, está a grande força do tema que trabalhou. No contexto em que cada palavra é exposta, ela, tem a função de núcleo central, assim poder-se-ão imaginar muitos cenários à sua volta. Penso que é esse o efeito desejado.

Desejo-lhe muitas Felicidades.

Muitos beijos.