segunda-feira, 13 de julho de 2009




Carmen Bentes
M
Templários
M
Eu escondo um cálice sagrado
Guardo segredos ancestrais
Creio nas forças da terra
Expulso as hordas de bárbaros
Luto sobre bastiões sagrados
O que queres saber mais?
M
Eu tenho uma legião de guerreiros
E pavilhões altaneiros
A lâmina de têmpera invencível
As brumas me tornam invisível
A barca me leva e me traz
O que queres saber mais?
M
Eu festejo os solstícios
A passagem das estações
Afasto malefícios
Converto os pagãos
Conduzo os cegos
Batizo os animais
O que queres saber mais?
M
Não tentes desvendar
O mistério dos cavaleiros
Não tentes adivinhar
Nem procures crer
O templo está guardado
O pergaminho está lacrado
Nada mais podes saber.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Carmen Bentes

Um grito no espelho


- A sensação de náusea, sei lá... angústia, parece que vou morrer a qualquer momento, essa ansiedade sem controle, esse medo inexplicável. Não suporto mais.

- Tem tomado a medicação? (vinda dos umbrais, pensou ela, parecia que aquele médico, tinha voz de morte).

- Hum? Medicação. Ah! Não me agrada tomar medicação de louco.

- Louco? (novamente a voz dos umbrais), a medicação que lhe dei é específica para seu caso.

“Específica para o meu caso...quem dera eu soubesse qual é o meu caso. Como fiquei assim”?

Entrou em casa e o estômago dava os conhecidos sinais de vômito iminente, nem parou para cumprimentar o marido e a filha de quatro anos. Foi despejar sua agonia no banheiro e findo o inexorável processo que há meses lhe perseguia, entrou no chuveiro. O banho, interminável e quente, era seu único refúgio, como um ventre materno. Saiu e se expôs nua em frente ao espelho, na sua mazela de não tomar conta de si e nem de mais nada. Soltou um gemido, que mais se assemelhava a um vagido de dor e desespero.

Impiedoso e franco (dessas franquezas dispensáveis) o espelho lhe mostrava um zumbi, saindo de si mesma. Anoréxica, pálida, covas profundas e arroxeadas nos olhos, uma silhueta estranha, porquanto magra e desproporcional à estrutura óssea de largos quadris. Novamente a náusea e o retorno ao banho. No armário estavam os remédios. Olhou as bulas, leu e decidiu-se por um indutor de sono.

Separou uma garrafa de uísque e escondeu-a no banheiro. Agora era só esperar.

Num hercúleo esforço, automatizado por instintos, colocou a menina na cama e a beijou. Já estava adormecida mesmo. O escatológico ritual de vômitos constantes e banhos de exorcismo para livrar-se das angústias e limpar-se da azeda náusea de quem mais nada tem a vomitar, a não ser a própria existência, era demorado. A menina sempre adormecia antes.

Madrugada de soturno silêncio, o silêncio que deveria permanecer para sempre com ela. Levantou-se. Não dormia. Dormir era um luxo, as insônias, pesadelos horríveis e incontáveis cigarros acessos – um em seguida ao outro - já eram seus pares perfeitos. Caminhou para o banheiro.

Trêmula, não pelo que estava por acontecer, mas porque vivia assim, trêmula, abriu o armário e assenhorou-se do remédio escolhido.

“Que barulho delicioso e montóno fazem esses aparelhos de ar-condicionado. Barulho bom, quase como uma cantiga de ninar, quase uma ladainha para que os vão partir”, ela e seus pensamentos tão eloqüentes e distorcidos...

Tudo era de uma simplicidade estarrecedora: ingerir todos os comprimidos com o uísque, sentar-se no chão do box com o chuveiro ligado, onde adormeceria amparada pelo casulo dos ajuzelos e tudo o que temia estaria acabado. E, finalmente, a paz.

“Ah! Um copo” (beber do gargalo, jamais, cisma inexplicável), mas o percurso de volta até a cozinha lhe pareceu absurdo e longo.

“Uso uma das mamadeiras sem o bico” coisa ridícula de se cogitar naquele instante, mas estava tão perto...abriu a porta do quarto da filha e o armário onde estavam as mamadeiras ainda sem uso.

- Oi mamãe!

Mamadeira no chão, largada pelo susto. Ela de pé, como um sinistro monge em seu roupão fitando a filha, também de pé, com o cobertor na mão e o bichinho favorito na outra.

- Quero dormir com você. Vou levar o Buba. Assim você vai dormir um soninho gostoso, o Buba nina a gente, tá?

Esgotada de tantas dores, foi ajoelhando-se em etapas, até ficar sentada grotescamente enquanto chorava.

- Chora não mamãe, o Buba toma conta da gente, chora não que eu também choro.

Agarrou a menina com força.

- Ai mamãe, assim machuca! Me bota no colo.

Filha no regaço, foi até o quarto e deitou-a na sua cama.

- Espera que a mamãe já vem dormir com você.

Retornou ao banheiro e novamente aquele vagido rouco em frente ao espelho. Não conseguiu mais chorar. Tomou a medicação e voltou para o quarto. Deitou-se ao lado da menina.Tinha então que ser daquele jeito. O destino escolhera assim.

- Chamamos para receber o diploma de bacharel em Direito...

Acordou de suas lembranças e voltou a observar a formatura da filha. Linda em sua beca, radiante, feliz. Vinte anos atrás, aquela jovem mulher a tinha trazido de volta. Como alguém que mergulha e resgata um afogado das profundezas abissais.

O segundo marido, seu casamento não resistira a sua psique instável e nebulosa, segurava-lhe a mão e sussurrava ao seu ouvido:

- Parabéns amor, ela já lhe contou em que ramo do direito vai se especializar?

- Ela vai ser feliz. Ela vai ser feliz. Feliz. Só feliz.

- Claro. Ele encerrou o assunto ali e observou-a com cautela porque conhecia sua gangorra emocional.

Sabia que naquele momento, a repetição contumaz do “ela vai ser feliz” não era uma assertiva. Era uma prece para que a vida de sua filha não repetisse o destino daquela mulher que se repetia amedrontada. Ainda, e talvez para sempre, amedrontada.

O medo inexplicável era como um Minotauro à espreita, escondido nos seus labirintos existenciais.


(Este conto é uma adaptação de um dos capítulos do romance "A sacerdotisa das sombras", ainda a ser concluído e publicado. Obrigado Carmen! Acima, detalhe de uma fotografia de Robert Capa.)